Blog Destino Atacama
A beleza árida do deserto do Atacama impressiona pelos contrastes.
Seca, sol, sal, silêncio, pedra, areia, ausência total de árvores, rara vegetação rasteira e quase nada de fauna. Assim vi o deserto do Atacama no norte do Chile, o mais alto e seco do mundo em algumas de suas regiões. Este deserto está mais próximo do oceano pacífico do que do Atlântico e tem uma explicação para este sinistro clima seco que grassa por aqui. Os ventos úmidos que trazem a umidade para o continente, vem do pacífico e colidem como as montanhas mais baixas, despejando as chuvas antes de atingir a altitude acima dos 3 mil metros do deserto, que só recebe o vento seco, sem a preciosa umidade, ou com apenas uma fração dela. Do lado leste a barreira das montanhas também bloqueia os ventos úmidos da Amazônia. Isso define este famoso clima árido no Atacama, podendo passar até 5 anos sem chuva em algumas regiões.
A velha e histórica casa que abrigou o fundador de Santiago do Chile em 1540
Andamos por planaltos há mais de quatro mil metros de altura acima do nível do mar com dimensões extraordinárias que abrigavam grandes extensões de solo estéril, gigantescas salinas de onde se extraem toneladas de sal da terra, diferente do sal de nossas salinas do Nordeste que são produzidos no litoral do oceano atlântico. Calor de dia, frio a noite e uma paisagem de encher os olhas pela sua beleza seca, salgada e desafiadora. Impossível não pensar no livro de Isabel Allende – Inês da minha alma, onde ela narra a saga do comandante militar espanhol Pedro de Valdívia quando atravessou, com uma tropa de espanhóis e índios, o deserto de Atacama vindo do Peru, para chegar ao sul onde fundou a cidade de Santiago, a atual capital do Chile, entre outras como Valdívia e La Serena. Livro épico de uma narrativa histórica cheia de detalhes sobre o horrendo deserto que espalhou cadáveres de conquistadores e índios que seguiam na caravana. Na cidade de São Pedro de Atacama, onde ficamos por dois dias, ainda está a casa construída em 1540 para receber Valdívia. Hoje se vive bem aqui em São Pedro do Atacama, tem energia elétrica, água e uma vida urbana de boa qualidade. Hotéis, pousadas e restaurantes se espalham pelas apertadas ruas da antiga cidade-oásis. Ali na praça, em frente à casa de Valdívia, fiquei imaginando aquele incipiente núcleo urbano de 1540, com suas poucas casas de adobe e telhados de palha e barro que, ao longo dos séculos, se transformou num oásis e centro de atividades turísticas, científicas e místicas do deserto do Atacama.
O Atacama com sua aridez, vicunhas, neve, areia, sal e montanhas
Andar pelas ruelas poeirentas da agitada cidade, ouvir os diferentes sotaques e idiomas do mundo todo que para cá acorrem em busca de ver o céu noturno, óvnis, sentir energias especiais, ver e sentir a história do lugar, é um aprendizado e um fluir de coisas novas, misteriosas e muito interessantes que por aqui circulam, indiferentes a seca dos arredores e do estreito das ruas que só admitem pedestres com suas roupas e hábitos tão diferentes como os meus coturnos de selva e a roupa colorida dos nativos, feita de pelos de lhama. Choques culturais da cabeça aos pés, do idioma à idade dos visitantes, do que buscam os que chegam e do que sobrevivem os que aqui moram. Penso no que Valdívia sentiu aqui quando no distante ano de 1540 chegou para uma pausa no seu objetivo de atingir uma região mais ao sul que pudesse ser capaz de suportar uma nova cidade, uma nova forma de vida. Pudesse ele voltar, hoje, teria um choque ao ver sua casa com uma placa de recarga de telefone celular e de cartões de crédito, fios de energia correndo pelo seu telhado já muito ameaçado e a decrepitude geral da casa que o abrigou. O tempo cobra de tudo e de todos.
Ruelas de São Pedro do Atacama recebem gente do mundo todo
Todas as tribos e culturas circulam pelo Atacam
A difícil tarefa de encontrar alguma vegetação, faz as vicunhas andarem quilômetros pelo deserto do Atacama.
Cardon gigante com mais de oito metros, e não era o maior.
Viajar através da Cordilheira dos Andes, de leste para oeste, é um dos mais estimulantes e impressionantes exercícios para se entender a geografia, a geologia, a biologia e a história do homem e suas conquistas. Já fizera uma travessia em outros tempos, com menos idade e outros objetivos, quando junto com meu primo Júlio Zanatta, o Sapo, cruzamos a cordilheira de ônibus de linha de Mendoza a Santiago do Chile e, mais ao sul, de Puerto Montt a Bariloche, quando vi pela primeira vez a impressionante cadeia de montanhas que se estende da Terra do Fogo ao norte do continente sul americano. Formada pelo choque da Placa de Nasca, do assoalho do Oceano Pacífico, com a Placa Sul-americana que, por ser mais leve, elevou-se permitindo o surgimento da grande cadeia de montanhas que conhecemos hoje com seus picos de mais de seis mil metros de altura, lagos salgados, salinas com dezenas de quilômetros, desertos e planaltos altos, frios e com vegetação baixa e rala.
Planaltos e montanhas se espalham de leste para oeste
Nesta viagem com destino ao Atacama, atravessamos a cordilheira mais ao norte, no Paso Jama que liga Pumamarca, na Argentina a São Pedro de Atacama, no Chile. Literalmente a paisagem é de tirar o fôlego, tanto devido a sua beleza e diversidade de cores e formas, como pela altitude de mais de quatro mil metros que rouba as forças fazendo que qualquer caminhada de uma dezena de metros pareça uma maratona. Falta de ar e de forças são os dois sintomas imediatos, que podem ser minimizados com o remédio local para isso: folhas de coca secas mascadas lentamente e mantidas na bochecha para que se vá engolindo o suco aos poucos. Compra-se um saquinho destas pequenas folhas em qualquer banca de beira de estrada dos nativos que ali moram e comercializam seus produtos de artesanato, que pode ser de pedra, de lã de lhama ou de inúmeros chás (jujos) de plantas que nunca vi, mas que servem para uma infinidade de agruras do corpo e da alma, segundo os vendedores. “Tira o sono e aumenta a força”, diz um nativo com pele queimada de sol e com a boca cheia de folhas de coca sendo mascadas. O gosto e o cheiro lembram a folha da erva mate seca que eu preparava em casa, quando fiz alguns quilos secando no forno e triturando no liquidificador.
Espinho protetores e captadores de água
Antes de atravessar a cordilheira visitamos um parque nacional argentino que foi criado para a preservação de uma espécie de cactos gigante, o Cardon. Trata-se de uma espécie de grande porte que pode chegar facilmente aos dez metros de altura e se espalha pelas planícies e penhascos desta região de montanha. Ficamos muitas horas no meio do cardonal olhando e aprendendo sobre eles e lamentando que nesta época de inverno suas flores brancas e seus frutos saborosos estavam ainda aguardando a primavera para se abrirem. Mas valeu muito conhecer estes gigantes dos andes e sua peculiar capacidade de viver em uma região seca e fria como esta. Sem folhas, diminuem muito a perda de água por evaporação e seus milhares de espinhos funcionam como captadores de umidade e formam gotas nas pontas que caem ao solo, sendo absorvidas pelas suas raízes. Durante as raras chuvas da região capturam tanta água que incham como um reservatório elástico, um mecanismo adaptativo que lhes permite aproveitar toda a água possível. O líquido acumulado será utilizado com calma durante o restante do ano pela planta, sobrevivendo muito bem nos longos períodos secos. Estas são apenas algumas das tantas adaptações desta espécie de planta de zona árida, fria e alta. Para enfrentar a hostilidade da região, uns perdem folhas e armazenam água, outros tem pele escura e mascam folhas de coca. Adapte-se ou morra, a velha regra da natureza.
Viver no deserto é coisa para especialista, como esta pequena planta que consegue se desenvolver entre as rochas e o solo seco do deserto do Atacama.
A pequena cidade de Pumamarca em Jujuy, no noroeste da Argentina, tem casas de adobe, estradas de adobe e poeira de adobe que se move a cada movimento de carro, vento ou gente. É uma identidade do lugar, assim como o Cerro das Sete cores eo artesanato indígena. Lugar diferenciado.
Rio Tártagos, que passa ao lado da casa de Atahualpa
Quando morei em Porto Alegre durante os anos 70 e 80, conheci a obra do poeta argentino Héctor Roberto Chavero, imortalizado pelo pseudônimo de Atahualpa Yupanqui que, no idioma Quéchua, significa “vindo de longe para contar”. Foi um cantor e compositor de músicas e poesias nativas e me gustava sua voz grave, rouca, meio opaca e calma falando das coisas e gentes de sua terra, sempre acompanhado de seu violão. Ele morreu na França em 1992, apenas dois anos após o passamento de sua esposa e, dizem, por que não suportou estar longe dela por muito tempo, já que viviam há mais de cinquenta anos unidos pelo amor e pela música. Entre tantas composições de Atahualpa, há uma que gosto muito – Piedra e camino, que fala de um tal Cerro Colorado, que eu idealizava como uma coxilha suave e com cores vermelhas emprestadas pelos cristais das rochas. Errei por pouco!
Cerro Colorado, visto da casa de Atahualpa
Na última sexta feira, 10 fui conhecer o famoso Cerro Colorado, que tanto ouvia falar nos versos do compositor. Está localizado perto da cidade de Jesus Maria, Departamento de Córdoba, onde estávamos hospedados em casa de Negro Cáceres, um irmão de Mário. Viagem rápida e tranquila por estradas boas que se deitavam pelas áridas planícies da região. Chegamos a uma pequena serra que quebrava o horizonte que há dias víamos, sempre plano e muito distante. Ali se espalha o pequeno povoado de Cerro Colorado e pude, finalmente, conhecer o famoso lugar. Atahualpa veio para cá conhecer a arte rupestre indígena, pela distante década de 30 do século passado, e se apaixonou pelo lugar, construiu uma pequena casa e o sítio se transformou em pura inspiração, onde compôs algumas de suas poesias e músicas.
A casa do poeta
Pouco antes de sua morte sua casa foi transformada em museu e sua propriedade em uma Fundação, que é administrada pelo seu filho. Pude ver alguns de seus pertences originais que descansam na casa, como seu violão, algumas partituras originais de suas músicas escritas por sua mulher, que era pianista, o quarto com as camas e o chinelo ainda aguardando ao lado da cama e, o mais importante, a energia que todo o local empresta a quem ali chega. No pátio da casa, voltado para um dos costados do Cerro Colorado, estão as cinzas do poeta, juntamente com as de um grande amigo seu que, por promessa em vida, queria que ali se depositassem seus restos.
Crianças de uma escola ao redor do local onde estão as cinzas do poeta e seu amigo
Mas antes da visita a casa do poeta, resolvi subir ao topo do Cerro Colorado e assim fui levado até o início da trilha e segui, calmo e com grande expectativa, pelos meandros do cerro escalando as rochas vermelhas e que muito se parecem com as nossas pedras de areia vindas de Taquara, que utilizamos para fazer muros e alicerces. Trilha forte, íngreme e sem escadas, com dificuldade consegui chegar ao topo e pude ali desfrutar de um cenário idílico, intenso, colorido e cheio de histórias de gentes do passado e do presente. Um vale cortado pelo pequeno rio Tártagos de águas limpas que cantam ao descerem pelas pedras e o Cerro Colorado no meio, parecendo olhar e cuidar de tudo em volta, fazendo o contraponto de harmonia na paisagem como se fosse uma das tantas poesias escritas por Atahualpa. Lá no topo do Cerro, junto com os urubus e o vento, pude sentir toda a força do vale abaixo e compreender o motivo do poeta ter se apaixonado pelo lugar e aqui fincado suas raízes. Junto, a este texto, algumas fotos para tentar passar ao leitor aquilo que senti, vi e absorvi do lugar. No retorno, cansado e feliz, reencontrei a família e amigos de Mario com um assado de cabrito feito ali pelo Táta, enquanto eu subia e descia do cerro. Um dia de descobertas e com um final apoteótico e inesquecível cercado de amigos novos. Um saludo e gracias a todos da família e Cáceres e amigos que tão bem aqui me receberam.
Sou do Cerro Colorado, onde não sabe chover
Onde ninguém cruza o rio, quando ele resolve crescer (Atahualpa Yupanqui)
Tu que podes, volte, me disse o rio chorando. Os cerros, que tanto queres, estão lá te esperando (Atahualpa Yupanqui)
A vista que se tem da janela desta tapera, localizada no deserto perto do Parque Nacional los Cardones em Payogasta, Salta - Argentina, é quase indescritível. Quase!