Blog A Borda

A hostil e profícua Borda

Do nada, a cerração surge do fundo do cânion e domina a paisagem, trazendo a chuva.

Viver na borda não é para os fracos. Os moradores daqui, que tem pousadas e fazendas, sabem disso e nenhum deles tem suas casas de moradia permanente perto da borda. Todos, sem exceção, constroem suas casas e galpões a quilômetros de distância das bordas do planalto, justamente num local aonde me encontro. O rigor do clima aqui é sentido como toda a força e severidade, impingindo nos viventes aquela umidade e frio que não se tem em outros lugares. Estou a cinco dias sem ver o sol, açoitado pelo vento, chuvisco e cerração que me tolhe a visão e me molha as lenhas e impede que eu vá ao campo fotografar, já que o equipamento pode sofrer com a umidade excessiva e a visibilidade é pífia, ficando tudo branco, sem definição e profundidade. Até os bichos sentem isso e desaparecem.

O tempo se armando para uma chuvarada de verão, aqui na Borda

Conhecia bem estes detalhes climáticos de outros tempos e trabalhos que fiz por aqui, mas me desafiei a enfrenta-lo, de frente, com toda paciência com o seu persistente hábito de ficar por dias molhando e amolando tudo e todos. Confesso que tem momentos de muita nostalgia, de solidão mesmo, apesar de gostar de estar só e fazer do silêncio o meu melhor momento para ler e escreve. Mas a insistência, a persistência com que o fenômeno se abate, às vezes, é de testar os nervos do vivente. Ler, escrever, cozinhar, limpar, lavar, manter o fogo, ler, escrever, cozinhar, lavar viram rotinas de dias seguidos e me testam os nervos, que consigo controlar por que estava preparado para isso. Vim para sentir e relatar os bons e os maus momentos, como agora estou fazendo. Hoje o dia foi de uma abre e fecha com mais nuvens do que sol e a agora a noite, copiando os dias anteriores, chove no seu início e segue até não sei que horas, porque durmo cedo aqui. Amanheceu quase sempre sem chuva, nos últimos dias, mas o tempo fica sempre carregado e pronto para disparar a cerração, que logo escala as bordas do cânion e cobre tudo. Mais um dia de ficar em casa e escrever, ler, cozinhar e atualizar mensagens, porque a internet aqui, mesmo lenta e limitada, me mantém conectado com o mundo fora da cerração.

A chuva vem forte, encharcando a mata e o campo podendo durar horas ou dias.

Chove aqui e não chove na Estância Tio Tonho e na Pousada Monte Negro, distantes apenas três quilômetros daqui. Isso dá uma ideia da severidade do clima da Borda.  Cansado um pouco do tilintar da chuva, coloco os fones, aumento o som e faço tocar Bohemian Rhapsodian, do Queen. Canto junto, batuco na mesa, no assoalho, solo junto com os dedos numa guitarra imaginária e me alucino mais uma vez com as harmonias vocais da banda. Baita som, baita hora e lugar para ouvir vária vezes. Depois troco para algo mais suave, como Vivaldi e depois algo mais raiz, como Pepeu Gonçalves. 

A chuva dá uma parada e a cerração levanta, mostrando as luzes do litoral de Santa Catarina, há mais de 50 quilômetros em linha reta daqui do container. Estou aguardando, em vão, uma noite limpa neste período de lua cheia para fazer umas fotos noturnas, mas não tenho tido sorte. Vou ter que aguardar a lua cheia de abril. Mas esta hostilidade implacável tem uma explicação, pelo menos para mim que estou aqui curtido e quase com musgos e liquens pelas roupas: é o preço a se pagar pelos dias em que há uma trégua e o sol domina a paisagem, mostrando todos os detalhes deste extraordinário e inigualável lugar do nosso Rio Grande do Sul. Vale qualquer esforço, e isto eu dizia já aos meus alunos quando os trazia para cá nas aulas de campo da disciplina de Turismo Rural na UCS: para conhecer lugares extraordinários, a viagem é sempre dura e difícil, longa e cansativa. E assim era. Mas quando chegávamos, tudo se dissipava, o cansaço era esquecido, a dor da viagem sumia tão rápida como some a dor de um parto, assim que o filho é visto e colocado no colo da mãe. A borda tem um encanto único, raro e soberbo, mas o preço é equivalente. Sua hostilidade acaba fundida no encanto que oferece, por único.

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