Blog A Borda

Os sons da Borda

A curicaca é uma ave símbolo da região, com seu visual e seus sons característicos

Viver num lugar em que durante muitos dias os únicos sons que eu escuto são os produzidos pela natureza, é uma experiência fascinante me faz prestar muito mais a atenção em detalhes de vozes naturais que eu não percebia, que não sabia que existiam, dando ainda mais valor a uma vivência em ambientes longe de cidades e das coisas que sonam de forma estridente e perturbadora. Já me habituei e consigo identifica muitos dos gritos, rufares, cricris, sibilos, bufadas e berros dos animais; estalos e farfalhar das árvores e arbustos; valsas e sinfonias que vem com o vento quando açoita o campo ou a mata nebular acionando seus múltiplos instrumentos secretos.

Mesmo antes do sol nascer, as gralhas-azuis já se posicionam e a sentinela dispara seu alarme emitindo os característicos gritos de alerta acordando o bando e se dirigindo, agora em silêncio, para os locais de alimentação, que nesta época de início de outono, são as matas de araucárias que começam a oferecer os preciosos pinhões maduros, dourados e cheios de energia. Ouço o rápido e intenso rufar de asas dos tico-ticos que habitam o meu quintal, sempre atrás de sementes das gramíneas do campo, de algum inseto ou de um resto de quirera de milho que fica pelo chão. Nesta época de outono, eles já não cantam e emitem apenas os típicos estalos “tic” “tic” “tic” que os identifica e lhes deu o nome popular.

De um pinheiro isolado no campo vem os gritos agudos e estalados de um casal de pica-pau-do-campo, e parece que para estas belas aves do campo o ritual de acordar envolve uma visita a este pinheiro e alguns minutos de vocalização, como se estivessem saudando o dia. Logos se somem pelo campo atrás de cupins e formigas. As corucacas já rosnam e alçam voos dos seus poleiros nos pinheiros-dormitórios e vão em formação para os campos e banhados, gritando como estivessem chamando todos para seguirem juntos. É um som metálico forte, inconfundível que se repete no final do dia.

Vista para o leste, de onde o vento traz os sons da chuva e da cerração

O vento me traz vários sons, dependendo da sua direção e intensidade. Se vem do sul, como brisa, arrasta junto o som de uma cachoeira distante formada no leito do Rio do Marco, que tantas vezes já visitei. O som longínquo da água estalando nas pedras me leva direto aquele poço onde a água faz um rebojo e anda em círculo até achar a saída. Ouço o som e saboreio o lugar. É o presente que o vento me traz do sul. Se o vento vem do oeste, ele bate nas hastes maduras dos capins altos do campo localizado a minha direita e emite sons fluídos, sutis, de coisas passando por uma tela fina sem pressa. É uma música muito suave que evoca pensar em coisas boas, em amigos, vinhos, filhos e família. Se ele vem do leste, aí o vento não canta suave, mas vem rebelde, rápido e encharcado de água que arrancou do oceano. Então a música é parecida com açoites no ar, vibrando o que estiver pela frente e molhando de pingar. Se vem com chuva forte, aí sim a música vira uma sinfonia complexa, ficando difícil definir e identificar cada som, cada instrumento. Rajadas, respingos e relâmpagos fazem parte do repertório deste vento com chuva, que pode durar horas, ou dias.

Para quebrar a sequência de sons naturais, ouço o som metálico e grave das turbinas de algum avião de carreira que vem do sul e se dirige para o norte, passando bem por cima da Borda, muitos quilômetros acima. Mesmo assim seu som se arrasta pelo campo como um mostro invisível que vem andando sem que ninguém veja, apenas ouvindo. Passa o avião e eu volto a absorver os sons naturais exclusivos aqui da Borda.

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