Blog Nascentes do Rio Uruguai
A música das águas nascentes
Sentado na primeira fila da sinfonia da água e escrevendo esta crônica
Arroio de serra salta e canta, rio de planície desliza em silêncio. Estou sentado junto a um trecho do Arroio da Branca, um pequeno curso de água que nasce próximo da Pousada Monte Negro e escorrega por um vale encaixado no meio de campos e matas, passando ao largo da Estância Tio Tonho. Segue pelo campo até se encontrar com o rio do Marco, que segue até encontrar o rio Silveira, que segue até encontrar o Rio Pelotas que segue até trocar o nome para Rio Uruguai e que acaba encontrando o Rio da Prata, lá nas bandas da Uruguai.
Aqui, ainda no seu nascedouro, o Arroio da Branca canta uma música simples e de poucas notas emanada do choque que a pressa da água emite contra pedras, galhos e barrancas do seu estreito leito. É uma música que parece repetitiva, mas que tem uma melodia envolvente e poderosa que desata todas as travas e libera a mente para que possa fluir livre como o seu curso. A água sabe das coisas, pois ela não debate com seus obstáculos, ela simplesmente os contorna, criando saídas por aqui, por ali e seguindo sempre seu destino e isso me ensina que sempre há uma saída para as coisas, por mais medonhas e escabrosas que possam parecer.
Arroio da Branca e sua exuberante vegetação das margens
A música pode mudar, dependendo do volume de água que corre pelo leito, mas ela é sempre envolvente e encantadora, por nunca se repetir e sempre invocar beleza, pureza e destreza. A água que corre a minha frente parece inesgotável e sempre apressada, mal sabendo ela que a viagem até o oceano é longa e cheia de surpresas. Mesmo enquanto ainda é um arroio ele cria um obstáculo para os pequenos animais, cerceando o ir e vir entre uma margem e outra, já que para a maioria, basta um passo largo para vencer a barreira. Vejo um galho de pinheiro que foi arrastado pela correnteza durante a última cheia e que formou uma ponte natural sobre o arroio. Frágil como um galho podre, serve agora de ponte temporária para uma legião de formigas que cruzam o arroio de lá para cá e de cá para lá carregando sua preciosa carga de folhas cortadas. Pelo que vejo, o ninho de formigas está na margem oposta de onde estou, já que elas levam para lá suas folhas. Quando vier outra enxurrada e o arroio novamente arrastar troncos e pedras, esta ponte provavelmente será levada adiante e as formigas terão que se adaptar novamente a nova situação, mas a música do rio continuará a mesma, com seu embalo gostoso que evoca instrumentos desconhecidos formados por pedras, paus e barrancos e tocados pela correria da massa de água que esbarra e tilinta notas agradáveis.
Ponte provisória com um galho de pinheiro utilizada pelas formigas carregadeiras para atravessar o Arroio da Branca, em S. J. dos Ausentes.
A água desce pelo sulco aberto no campo, ora apertado entre as barrancas, ora espalhado sobre um lajeado e parece não ligar muito para quem vive por ali. Seu corpo, sem consentimento, é sugado e socializado com as raízes das plantas que habitam suas margens e serve também para a dessedentação do gado e todos as demais espécies que por aqui andam ao longo do seu curso, como o graxaim, o mão-pelada, a saracura, o veado-campeiro, o javali, o gato-do-mato, a irara, o lagarto-teiú, o jacú, a seriema, a gralha-azul, o sabiá-do-banhado, o tico-tico, o canário-da-terra, a jararaca e outros tantos.
Arroio da Branca próximo da Estância Tio Tonho, em S.J. dos Ausentes
A sua abundância, constância e fluidez criam tal umidade no ar que permite a vida de líquens e musgos em profusão perto de suas margens, seja nas cercas ou nos arbustos e árvores que medram ao longo do seu curso. Por tudo isso, o canto da água é apenas mais um elemento que ela me oferece e assim posso passar muitas horas ouvindo e escrevendo, sentado na primeira fila, muito perto desta orquestra campeira, na água nascente do nosso grande rio. Raro privilégio. (Segue na próxima semana)