Blog Nascentes do Rio Uruguai

As águas nascentes das matas

 

Topo do Morro da Cruzinha com a cruz missioneira

Subi no topo Morro da Cruzinha, com seus mil trezentos e vinte e cinco metros de altura (medição feita no meu celular), considerado o segundo ponto mais alto do Rio Grande do Sul, e olhei demoradamente para o sul. Ali embaixo e a frente se espalham, como artérias abertas, muitos arroios de pequeno caudal que nascem ou nos banhados ou dentro das matas de araucária, que são inúmeras por aqui. Olhar aquelas manchas de verde escuro com o predomínio das coroas dos pinheiros, remete-me a um tempo que não vivi, mas que reconstruí baseado em leituras e depoimentos de velhos amigos que me informaram de como era esta rara mata antes ou durante o tempo das madeireiras.

Vista para o sul do Morro da Cruzinha com as matas de araucária de onde surgem as nascentes

Inúmeras nascentes escapam dos matos e correm pelo vale, tocadas para fora por uma força oculta, como os bichos fazem quando estimulam seus filhos a seguirem seu caminho. Ao se juntarem, estes cursos vão formar o rio das Contas, um dos formadores do lado gaúcho do Grande Rio Uruguai. A visão é deslumbrante e olho para a cruz missioneira, erguida no topo do morro, e penso nos tropeiros e primeiros fazendeiros que por aqui se aventuraram em travessias para São Paulo ou na criação de gado, cavalos e mulas. Por aquele incipiente rio das Contas passa a divisa dos estados do Rio Grande e Santa Catarina, que daqui de cima aparece como pedaços compridos e irregulares de espelhos refletindo o céu azul deste dia.

Desço do morro e entro pelas apertadas, esburacadas e bucólicas estradas do local e me embrenho pelo campo e matas adentro para encontrar o nascedouro das águas. Muitos arroios cortam a mata e criam cenários fantásticos, de uma beleza e singeleza difícil de encontrar em outros lugares. Pedras de todos os tamanhos e formas recobertas de musgos, líquens e samambaias se antepõem no caminho das águas e a sua transparência e pureza convida a um gole e um rosto lavado, refrescando o calorão deste verão incomum.

Rio Louco (direita) recebe um afluente originado logo acima em uma turfeira

Noutro lugar, mais para o oeste, na Fazenda do Rincão Comprido, encontro nascentes do Rio Louco, afluente esquerdo do Pelotas e que tem esta alcunha devido ao seu mau humor durante as chuvaradas, crescendo rápido e levando tudo por diante. Ali encontrei um ambiente tão primitivo e conservado que me transportou automaticamente à era dos dinossauros. Araucárias e Xaxins multisseculares de tamanhos e formas incomuns vigiam e guardam as águas puras destas nascentes, parecendo que querem mesmo esconder o precioso líquido em seu nascedouro, formado por um grande banhado com turfeiras pouco mais acima, no campo. Uma pequena cachoeira escondida no meio da vegetação cria o primeiro divertimento do arroio, fazendo a água cantar quando se atira da pequena altura de uns dois metros, rugindo e rindo contra as negras pedras de basalto que as recebem. Lugar especial, inesquecível mesmo e que permite pensar como a vida pode ser boa, simples e despojada de adereços inúteis em um lugar tão bucólico como esta pequena cachoeira escondida, numa grota de muito boas lembranças.

Xaxins e araucárias multiseculares protegem uma nascente do Rio Louco

Assim as águas surgem, passam pelas florestas, matam a sede dos xaxins, pinheiros, goiabeiras-serranas, cascas-de-anta, brincos-de-princesa e um grande número de plantas pequenas e grandes e seguem ao encontro de um curso maior, que segue até outro maior ainda, e outro maior até o oceano Atlântico. É uma viagem longa onde as águas daqui podem contar, para as águas de lá, como é o local de onde vieram, e as de lá, contar a estas como será a vida quando de doce, passarem a ser água salgada e misturadas num mundo novo e imenso. Resta a estas águas aguardarem pelas correntes de umidade que um dia as arrancarão do oceano e as recolocarão, como chuva, novamente em algum continente, mas dificilmente retornarão ao torrão natal.  (Segue na próxima semana)

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