Blog Vale do Rio Silveira

A paisagem original

Foz do Rio do Marco (primeiro plano) com o Rio Silveira

Uma coisa difícil de se fazer, mas que eu gosto muito, é tentar abstrair de uma paisagem que está a minha frente o fator humano recente, aquele que veio depois dos nativos daqui, como Caingangs, Xoklengs e Guaranis. Por quê? Talvez nunca saiba, mas isso me desafia e fascina a cada vez que estou em um lugar um pouco mais remoto, como alguns aqui do Vale do Rio Silveira, em São José dos Ausentes. Olho uma paisagem e, caso tenha intervenções humanas como lavouras, casas, estradas, matas de pinus ou pastagens de inverno, utilizo do meu programa mental e vou removendo um a um os elementos. Crio, no final, um quadro que só eu vejo e que consiste de uma paisagem supostamente original porque reconstituo a flora original baseado nos estudos de botânicos dos séculos 18 e 19 com o campo exuberante e a força das matas de araucárias; faço o mesmo com a fauna e devolvo os rebanhos de veados-campeiros, antas, onças-pintadas e os porcos nativos; corrijo as chagas abertas pelas estradas e retiro o sistema de placas de orientação e pontes; cubro os drenos de banhados e várzeas; desmancho as taipas e espalho as pedras novamente pelo campo; removo os barramentos dos açudes e deixo seguir o curso normal das nascentes; abstraio casas, galpões e todo o gado, cavalos, ovelhas, porcos, galinhas, cães e gatos domésticos; faço desaparecer o sistema de distribuição de energia elétrica com seus fios e postes; apago os carros, tratores, caminhões e maquinário em geral. Zero a intervenção humana recente. Aí tento ver o ambiente como era visto e utilizado pelos nossos nativos, com nenhuma destas coisas que listei acima. Eles viviam mais balizados pelos ciclos naturais que tudo comandavam. Pinhão no outono e inverno, outras frutas no verão, caça relativamente abundante e, como alternativa, descerem ao litoral para coletarem moluscos, armazenando suas conchas vazias em montanhas que até hoje se encontram em diversas partes do nosso litoral, conhecidas como “concheiros” ou sambaquis.

Vale do Rio Silveira, próximo da vila homônima

Fico imaginando o campo alto com alguns rebanhos de veados pastadores e nenhuma ovelha, boi, vaca ou terneiro. O pasto deveria ser mesmo alto e de difícil localização de presas e predadores. Incêndios acidentais ou naturais mantinham o pasto sob certo controle, como foi seguido pelos nossos ancestrais europeus quando aqui chegaram. A mata de araucárias com seus exemplares multisseculares em abundância abrigava uma intrincada e complexa mata mais baixa acobertada pelas suas copas em forma de guarda-chuvas invertido e garantia a vida de milhares de papagaios, gralhas, tiribas e uma legião de comedores que viviam no solo, como as cutias, roedores menores, saracuras e outros.

Vou me deliciando com a imagem produzida no meu computador mental e penso que o homem europeu se expandiu e dominou muitas partes do mundo em função de que desenvolveu tecnologias sofisticadas de agricultura, pecuária, metalurgia e de guerra que os tornaram quase imbatíveis quando chegavam em “mundos novos”. Aqui não foi diferente. Os nativos viviam ainda numa idade da pedra e foram confrontados com armas de fogo, aço de espadas afiadas, vírus da gripe e outros agentes biológicos aos quais não tinham nenhuma resistência. Mudou a população, mudou a paisagem. Eu sou descendente de um destes bravos que para cá vieram em busca de vida melhor e acompanhei a mudança operada na paisagem. Sofro um pouco como sofreram nossos bravos nativos que aqui viviam ainda na idade da pedra, ou menos. Mas também entendo que a vida é assim e quando há confrontos de civilizações, e a história humana está cheia de exemplos deste tipo, ganham as mais preparadas. Continuo saboreando a paisagem original criada por mim e aí penso: não fosse esta invasão e domínio nestas terras pelos europeus, eu não estaria aqui me deliciando com este exercício de voltar ao passado, não poderia estar escrevendo estra crônica e você não estaria lendo este meu delírio. No final, assim é a vida e tudo vale a pena.

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