Taperas do vale
A tapera, por definição, é uma casa ou um grupo delas, abandonadas há muito tempo e em estado de ruína. Gosto das taperas porque elas são os últimos testemunhos de um tempo e depositários de uma história arquivada nos tijolos, caibros, telhados, assoalhos e tudo o mais que sobrou de uma época.
Ando com respeito e admiração quando encontro uma e sempre fico perguntando a ela qual é a sua história. Ela vai me contando através daquilo que sobrou, das coisas que a erosão do tempo não consumiu. Uma fechadura enferrujada e torta me conta de quantas mãos a giraram, de tantos momentos de ansiedade e fúria com que foi torcida para abrir ou fechar a porta ao mundo externo e interno; uma vidraça quebrada com o tampo da janela já no chão, contam do vento último que o deslocou das dobradiças, já tão enferrujadas que não se dobram mais; o assoalho com furos e tábuas faltando, conta de quantas alpargatas lisas e de botas embarradas que se esfregaram em suas costas, pés descalços também acariciaram seus veios que hoje cedem aos cupins e fungos da madeira; em um vão formado pela falta de uma tábua, nasceu um arbusto que se espicha em direção a luz vinda de buracos do teto; o telhado, que outrora vedava luz e água, agora permite a passagem de ambos em muitos lugares, mostrando um céu azul e uma claridade que insiste em entrar para ver o interior da tapera, parecendo foco de uma lanterna indiscreta invadindo o ambiente tanto tempo oculto pelas telhas de barro; as paredes finas que dividiam os poucos cômodos, agora se parecem com papel velho e carcomido pela umidade que entra nas chuvaradas de agosto; o que fora a cozinha, mostra uma pia mais preta que branca, com crostas de sujeira que o tempo se encarregou de depositar ali um pouco por dia, vinda de fora soprada pelo vento que agora transita livremente pelo interior, decantando poeira, folhas e tudo o mais que possa carregar com sua energia; o fogão a lenha tem sua chapa tão enferrujada que não resistiria a um fogo mais forte com uma panela sobre ele, tão fino e carcomido está e dentro da fornalha restam ainda cinzas e carvões da última vez em que foi acionado, podendo ter sido feito para aquecer o último morador ou servir para preparo da última refeição feita ali, ou para ambos.
No lado de fora da tapera há muitos objetos carregados de história, bastando que se saiba ler seus complexos hieróglifos. Uma carcaça de geladeira, já sem tampa, exibe seu interior que fora branco, limpo e liso, mas que agora é salpicado de crostas de líquens, galhos e restos de um ninho de alguma ave que viu ali um local seguro para sua prole ser criada. Buracos de pica-pau vazam as paredes acelerando a entrada de ar e luz na velha casa. Arames de cerca enrolados e depositados num canto podem falar que um dia serviram de cerca e que, depois de velho, foram enrolados e depositados ali para alguma serventia futura, ou para serem devorados pelo oxigênio num lento processo que vai tornando o fio enferrujado e frágil, como se fora um velho abandonado para morrer sozinho. Quanto gado, ovelhas e cavalos estes arames não seguraram nos potreiros onde estavam esticados? Só eles sabem. Penico, cacos de vidro, panela furada e sem cabo, lascas de pratos, restos de uma pá, esqueleto de um guarda-chuvas já sem o cabo e sem o pano dizem coisas da vida que havia ali, e que agora foi substituída por outra formada pelos moradores locais, não humanos e muito abundantes e diversificados. Basta uns minutos numa tapera para se ter uma noção do que ali havia e do que restou. O tempo não morre como uma tapera, ele vai transformando tudo e permitindo que a vida se instale sempre que uma outra abandone o lugar. Assim se personaliza a máxima de Antoine-Laurent de Lavoisier: na natureza nada se cria, nadas se perde, tudo se transforma. Inclusive uma tapera.