No divisor de águas
O escritório que utilizei para escrever esta crônica
Hoje resolvi mudar o endereço do meu escritório. Vim até a borda do cânion da Coxilha e me instalei dentro de uma pequena mata de cambuim com apenas o necessário para uma escrita -o notebook e a minha percepção sobre a paisagem. De onde estou, consigo estender a vista muito longe em direção ao sul, acompanhando as ondulações do campo que, neste pleno verão, estão muito verdes e suportam bem os rebanhos de gado, cavalos e veados campeiros.
Vista de dentro da mata de cambuins, meu escritório por algumas horas
As águas daqui seguem por dois caminhos superficiais: ou elas abastecem os arroios que vão para o interior do cânion e seguem até o rio Araranguá e daí até o oceano, ou seguem para oeste, pelo campo e suas dobras, caindo em algum arroio formador do Rio Silveira. Entre estas duas alternativas, ergue-se uma crista do terreno que faz a água ir para o leste ou para oeste. É como se fosse uma parede que separa duas áreas de terra com inclinações opostas. É justamente esta crista de terra e rochas que obriga a água seguir para cá ou para lá, que se chama de Divisor de Águas. Daqui onde estou é possível perceber a inclinação do planalto na direção oeste, levando a maior parte da água que aqui é jogada pela chuva, para a bacia do Rio Uruguai, através do Rio Silveira e do Pelotas.
Vista para o sul, com o cânion da Coxilha e o divisor de águas
Caminhar pelo divisor de águas é como andar em cima de um muro, só que muito largo e irregular. Fico pensando no trajeto que cada uma das águas daqui tem que seguir até chegar ao oceano. Aquela que desce pelo cânion, tem um trajeto curto de não mais que 50 quilômetros em linha reta até a foz do rio Araranguá, na praia de Morro dos Conventos em Santa Catarina. As águas que correm para o outro lado têm um percurso muito mais longo, percorrendo toda a divisa norte do Rio Grande do Sul, através do Rio Uruguai.
Se eu fosse a água e pudesse escolher, optaria pela via mais longa. Poderia ver coisas muito diferentes ao longo da minha jornada começando aqui pelos campos de altitude e seguindo por estreitos paredões com matas de araucárias nas margens protegendo meus caminhos. Logo chegaria ao vale do Pelotas, onde a mataria é outra e sem as araucárias do planalto. Correndo sempre para oeste, ainda como nome de Rio Pelotas, atravesso a Barragem da Usina de Barra Grande e logo adiante recebo as águas do rio do Peixe, que vem de Santa Catarina, e passo a me chamar de Rio Uruguai, agora com muita água barrenta e carregada de muito tronco e galhos que arranco das margens formando algumas pequenas ilhas flutuantes de vegetação. Nelas levo roedores, insetos, aranhas, serpentes e lagartos para praias muito longe do local original, contribuindo para a dispersão das espécies. Passo pelas represas de Machadinho, Itá e Foz do Chapecó e sigo adiante até o salto do Yucumã, na divisa com a Argentina. Adiante passo pela região Missioneira, com suas terras cor de telha, e de um lado vejo o Uruguai e do outro o Rio Grande do Sul e sinto a história que ali foi escrita por Guaranis aldeados pelos padres das Missões. Passo por São Borja, Uruguaiana e desço até encontrar com a última barragem construída, a de Salto Grande. Atravesso as turbinas e acabo desembocando no grande Rio da Prata, perto de Colônia do Sacramento, quando me misturo e sigo assim até o oceano. Muito tempo eu levei para chegar até aqui na foz e, se pudesse, perguntaria para a outra água que seguiu pelo cânion, qual foi a sua experiência ao longo do trajeto até o mar.