Blog Andando por Aí

Não é minha culpa

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Eu sou água, líquido vital presente em 70% da superfície do planeta. Quando escorro da montanha para a planície, de forma a não causar estragos na paisagem, sou admirada e reverenciada. Igualmente, numa calma praia de brancas areias com sol e coqueiros, sou querida. Quando proporciono banhos quentes nas casas, lavo as roupas suadas das pessoas, elimino seus excrementos e carrego para longe seus odores, sou amada.  Meu caminho natural sempre foi correr dos lugares altos para as baixadas, até chegar ao mar. No trajeto, passo em solos de diferentes locais, quando vou me espremendo entre paredões, espalhando ou caindo como cascata. Encontro pedras e cascalhos de todos os tipos e tamanhos, os quais vou rolando, quebrando, polindo e formando seixos e areia fina. Cavouco barrancas e levo a terra adiante para criar novos ambientes. Atravesso florestas, as quais sombreiam meu corpo e também, com suas raízes, agarram e protegem as barrancas para não me entregarem todo o solo precioso, fundamental para as árvores. Danço pelos campos sedentos de nutrientes dissolvidos, os quais espalho generosamente entre as gramíneas, vassouras, carquejas e trevos. Descanso um pouco nas planícies, onde me acalmo e viro lagos e lagunas prontas para saciar a sede de lavouras de arroz e soja. Finalmente, entrego-me ao sal do gigantesco oceano, o qual me recebe sem nada pedir em troca, aceitando meu açúcar de água doce misturar-se ao seu corpo salgado. Quando o sol me arrancar novamente, agora na forma de vapor, e o vento me levar de volta para algum continente, caio novamente como chuva e começo uma nova caminhada até o mar. Assim eu vou ao mar e volto aos continentes, vou e volto, desde o início dos tempos.

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Quando alguns raros fatores naturais se somam e acumulam um grande volume de mim num único lugar, num tempo curto, eu viro um mostro líquido capaz de imprimir grandes alterações no meu trajeto. Arrasto e levo tudo pela frente, destruo sem piedade quaisquer obstáculos, sejam florestas, encostas, estradas, casas ou cidades inteiras. Deixo marcas amargas por onde passo, tiro vidas de quem não puder me suportar ou fugir a tempo. Crio tragédias medonhas e modifico paisagens, obrigando todos a se reorganizarem e até mudando pequenas cidades de local, temendo novos desastres. Nestas condições, fico enlouquecida, não enxergo nada, não escolho caminho e não meço consequências. Crio uma enchente sinistra, alterando a vida e a geografia. Sou uma ferramenta natural, modeladora da paisagem durante estes eventos raros, onde vou alargando os desfiladeiros, criando novas praias, novas curvas de rios e carregando a rica e preciosa lama, fertilizando e alegrando a vegetação. Mas, nas cidades e estradas, este lodo causa transtornos inimagináveis aos moradores, pois o deposito aleatoriamente em todos os lugares, inclusive dentro de suas casas, exigindo esforço para a retirada após minha passagem. Nestes últimos dias, aconteceu isso comigo num rincão chamado Rio Grande do Sul, no sul do Brasil. Fiz grandes estragos e as pessoas vão levar tempo para se recuperarem, mas saibam que não tenho controle sobre mim. Sou vital, mas posso ser letal. Não tenho culpa. Sou água.

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