Blog Andando por Aí

Ocaso, fogo e registros

Final de tarde nos campos de altitude de São José dos Ausentes, RS

O dia vai terminando, as sombras das coisas se alongam sobre o campo parecendo gigantes magros, a cor verde das araucárias começa a ficar dourada por alguns minutos apenas, contrastando com o tom azul, branco e alaranjado do céu com poucas nuvens. A fauna vai se acomodando e rematando as atividades do dia, preparando-se para atravessar o breu e o frio da noite que não tarda.

Gosto desta hora e deste espetáculo de troca de turno e de cores na natureza e decido continuar pelo campo. Recolho alguma lenha e nós de pinho que encontro e faço um fogo perto de uma grande pedra coberta de musgos, líquens e bromélias bem na divisa com um potreiro que abriga algumas vacas mansas que exercitam o paciente hábito da ruminação, após passarem muitas horas pastando e enchendo seus estômagos. A vista corre para o leste e vejo luz ainda no morro da nascente, que o sol se esforça por iluminar jogando seus últimos raios nas partes altas do planalto. O campo já mergulha na sombra que prenuncia a noite.

Abasteço o fogo e a luz quente e vermelha me convida a escrever. Um bem-te-vi atira ao ar seus últimos gritos, tentando encontrar seus parceiros e poleiro para passar a noite. Uma maria-faceira sibila o canto longo e inconfundível, parecendo um assobio triste e melancólico, e passa em um voo raso por sobre o gramado, dirigindo-se ao seu dormitório. Os quero-queros não se acomodam e gritam a todo momento com o menor movimento em seu campo de domínio.

Tico-ticos ticam seu som de outono de uma só nota e duas saracuras executam o derradeiro canto do final do dia na beira de um arroio de mata, seu local favorito. O sibilo do sabiá-laranjeira e das saíras é ouvido e seus voos curtos indicam que se recolhem, sem fogo e sem o calor das labaredas. Mas eles não necessitam deles como nós, muito mais dependentes deste elemento atávico.

Um silencioso e invisível mosquito conseguiu seu intento e, habilmente, sugou da minha panturrilha o sangue que o alimenta, indiferente aos movimentos que pratico no teclado do notebook e no ir e vir da mão para abastecer o fogo. Inseto rápido e decidido o mosquito, que se aproveita do calor emanado do meu corpo e do meu sangue quente para nutrir-se. O fogo começa se destacar mais e mais a medida que o sol se entrega e permite que a noite deite seu negrume sobre o campo. Um silêncio gostoso vai dominando a paisagem e o crepitar das labaredas entoam uma música ancestral que tanto me encanta. As chamas da fogueira hipnotizam pelo fato de serem sempre mutantes, nunca igual em suas formas, que se recriam enquanto tiver lenha para manter o fogo. A cada momento assumem formas e tamanhos diferentes, como faz a água em uma corredeira. Parece que a natureza não gosta de repetir formas. Assim é possível ficar horas seguidas apreciando o fogo que, de uma maneira agradável e estranha, amarra o meu olhar. A luz e o calor emanados de suas figuras são magnéticas, e mantiveram o homem das cavernas aquecido, cozinhou sua carne e espantou predadores. Começo a escrever menos em função do escuro e passo a me concentrar mais no espetáculo das labaredas e do colorido do céu.

Fileira de pinheiros em um final de dia nos campos de altitude

Fico no aguardo da lua que, em sua fase cheia, não deve demorar, e troco o meu olhar para o seu lado, abandonando o poente, onde o sol já vai longe iluminando outros rincões da terra.  O homem sem o fogo não teria chegado onde estou agora. Pedaços de madeira queimando na fogueira da mesma forma como o mais primitivo homem das cavernas fazia. Agora, com um notebook aberto, faço um registro deste final de dia e tento deixá-lo gravado eletronicamente em um local que não entendo bem. O homem primitivo devia fazer o mesmo, apenas que gravava em seu cérebro, este HD vivo que se deteriora quando a vida se extingue, o que nos fez perder muito da nossa história. Alguns tiveram a brilhante ideia de deixar alguns registros impressos em paredes protegidas de cavernas, na forma de arabescos e garatujas, que até hoje podemos apreciar e conhecer um pouco mais do nosso passado.  Por isso escrevo o que sinto e vejo, deixando armazenado em uma mídia que pode perdurar mais do que eu próprio. Isso me move, por isso deixo registros para que alguém possa ler hoje, amanhã ou daqui muitos anos e estas pessoas possam sentir o calor do fogo, o encanto do sibilar das aves se recolhendo e o sol partindo e deixando a cargo do fogo e da lua, um pouco de luz para uma noite que chega.  

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