Blog Andando por Aí

Pais e filhos

 Ser convidado por uma gurizada que tem a idade do meu filho, na faixa dos 28 a 30 anos, para uma janta que eles intitularam de “Pais e filhos”, é algo muito diferente e que me deu um grande prazer. Lá estavam, como era de se esperar, o meu filho João Pedro e a sua turma de amigos de infância, ou nem tanto. Gurizada de fé, caras boas e ideias arejadas, cheios de energia, alguns já com filhos e a vida inteira pela frente. Do outro lado nós, os coroas, os pais deles que já passamos pela fase que eles estão agora, já os criamos, educamos, ensinamos e colocamos neles alguns de nossos vícios. Vivemos uma vida bem mais longa, a maioria de nós com mais do que o dobro da que eles têm agora, e estamos de espectadores dos rumos e feitos que eles desenvolvem. Foi uma grande confraternização, uma festa verdadeira onde nós, os pais, fomos muito bem servidos pelos nossos filhos, tanto na bebida, na comida, no carinho e no forte amor demonstrados por todos, já que estamos amarrados pelos laços de sangue e de amizade, duas das cordas mais fortes que conheço.

A comida foi preparada por eles e servida empratada para cada pai presente: carne de panela, arroz e batata frita. Simples como a vida, saborosa como a amizade e o amor. O chope correu solto e embalou os espíritos e soltou as lembranças de situações vividas pelos pais, para curtição e atenção dos filos, e dos filhos, para curtição e espanto de alguns pais, que ficaram sabendo de algumas histórias mais sinistras e medonhas dos filhos neste encontro. Mas como todos sobreviveram, a confraternização seguiu com muitas risadas, abraços, fotos e promessas de repetira a dose, assim que possível for.

Estes encontros de duas gerações, são demais! Atiçam os mais velhos a falarem de suas lembranças mais caras, mais ousadas e mais importantes, aumentando o aperto no nó que prende as gerações, cultivando uma intimidade que aproxima cada um mais e mais, tornando-se mais conhecidos e vendo que a vida se repete de forma extraordinária. Nós, os mais velhos, temos algumas histórias interessantes para contar, mas eles, os mais novos, tem um leque de outras histórias que para mim são inimagináveis. Ver meu filho contando as histórias vividas na Austrália quando resolveram arrumar um trabalho temporário visando conseguirem recursos para irem até a Indonésia, faz com que eu agradeça a ele por não ter me contado tudo quando por lá estiveram. Lembrei dos meus tempos de guri de 20 anos e me dei conta que nesta fase da vida, tudo é possível. As gargalhadas atravessaram a noite, interrompidas por alguma nova história, tanto da minha geração como a deles.

Alguns pais não puderam participar, mas seus filhos estavam. Alguns filhos estavam ausentes, mas seus pais, presentes. Isso reforça os laços de amizade e de confiança e perpetua no tempo a certeza de que ali há um verdadeiro grupo de amigos, um verdadeiro entrevero de duas gerações que comungam muitas coisas e que se mantem vivas as melhores memórias de cada uma, quando nós mostramos a eles os caminhos do mundo e agora eles nos mostrando quais os caminhos que escolheram e seguem. Um espetáculo digno de uma segunda feira a noite. Que se repita este entrevero de gerações. Parabéns aos organizadores, parabéns a nossa geração que gerou esta que nos recebeu tão bem e que nos transborda de muito orgulho.

A conversa da gralha-azul

Uma gralha-azul com seu tesouro no bico

Parece coisa de maluco, mas eu afirmo que já ouvi, muitas vezes, a sutil conversa das gralhas-azuis. Isso mesmo, uma conversa em baixo volume, quase imperceptível. Todos sabem do adágio que diz que pessoas que falam alto, de forma estridente e continuada, são comparadas às gralhas: “parecem umas gralhas”, se diz. Acontece que há um outro repertório sonoro que elas utilizam, além deste festival de gritos emitidos quando um bando se sente ameaçado em seu território. Eles servem como um alerta que é disparado por aquelas que ficam de sentinela, enquanto o resto do bando se alimenta, alertando os demais para um perigo eminente.

Em algumas ocasiões, quando consigo me aproximara de um bando sem ser percebido, ouço o suave sibilo das gralhas, que parece nitidamente uma conversa ao pé do ouvido, de baixo volume. Para ouvir esta “prosa”, o local tem que ser ermo, silencioso e eu não posso ser visto por elas. Dentro da mata de pinheiros, sentado quieto em algum tronco, pedra ou no chão, fico dissimulado no território do bando e começo perceber, apurando o ouvido, que se desenrola um diálogo muito baixo, intenso e contínuo entre os diversos indivíduos do bando. É um som de estalidos e pios como se cochichando elas estivessem, enquanto se alimentam. É um momento raro que consigo desfrutar junto a intimidade do bando, que pode se traduzir por alguma discussão sobre os pinhões, que são abundantes e muito saborosos, onde enterrá-los, quais os pinheiros que estão com as pinhas maduras, etc. Isso tudo se desenrola num cenário idílico, cheio de cheiros e sons suaves produzidos pelo vento e pelas gralhas dentro da mata de araucárias. O bando segue se alimentando e “conversando” em tom muito baixo e imagino que podem, muito bem, estarem discutindo sobre a presença discreta de um estranho que está no solo, sentado sem se mover, parecendo um humano.

Vejo, sem me mover, que de vez em quando uma das gralhas desce ao solo com um pinhão no bico e procura um local seguro para enterrar a semente. Anda atenta até encontrar uma fenda entre pedras, troncos ou moitas com folhas formadas pela serapilheira, a semente dourada é cuidadosamente acomodada e coberta, como se um tesouro fosse. Este comportamento preventivo visa a criação de depósitos espalhados pela floresta toda, próximos ou distantes do pinheiro fêmea que os produziu, visando o abastecimento em dias mais difíceis, fora da estação de abundância – o outono. Muitos destes tesouros germinam antes das gralhas resgatarem o seu dividendo, tornando-se novas araucárias e garantindo a disseminação da espécie.

Um aentinela do bando cuidando e dando o alerta com a minha presença

Quando canso de ouvir a conversa do bando, levanto e estico as pernas cansadas de estarem dobradas, ando um pouco e sou logo identificado pelas sentinelas com um intruso de fato, uma ameaça verdadeira. Imediatamente cessa o chilreado discreto do grupo e tem início a gritaria que chega a tontear de tanta estridência e intensidade, quebrando o silêncio açucarado do local. Muitas gralhas se aproximam de mim, olhando e gritando, tentando intimidação e forçando o meu afastamento. Quando resisto a evasão, quem se afasta é o bando, saindo uma de cada vez, sumindo sem barulho de asas entre os galhos das araucárias, aborrecidas pelo incômodo que causei, interrompendo um momento importante do grupo, um momento de comer e conversar. É como se alguém chegasse para perturbar um almoço onde se confraterniza uma boa comida e a conversa flui descontraidamente, obrigando a todos se levantarem e abandonarem a mesa, não sem muitos protestos sonoros e ameaças ao invasor. Compreendo as gralhas e tento, sempre que possível, não interromper seus momentos de forrageamento e socialização. Elas, como nós, necessitam destes momentos.

As estradas caçadoras

Zorrilho atropelado, uma das milhares de vitimas da nossa biodiversidade.jpg

A caça, oficialmente, é proibida no Brasil, com exceção feita a algumas espécies introduzidas (exóticas), caso dos javalis, invasores agressivos e nefastos ao ambiente natural, e as lebres. Matar uma capivara silvestre para comer é crime, assim como qualquer outro animal da fauna considerada nativa do Brasil. Países do Prata têm caça permitida para algumas espécies como a perdiz, o perdigão, e várias espécies de marrecas, sempre atendendo a um calendário que respeite o ciclo de vida das espécies.

Poucos se dão conta de que há, por todo o nosso imenso território nacional, milhares de eficientes caçadores espalhados como serpentes por todos os ambientes, sejam parques de preservação, praias, cidades ou desertos. Esses caçadores são as nossas estradas e a munição, os carros, os caminhões e os ônibus. Mata-se mais nas estradas do que em qualquer outra circunstância, e a culpa é atribuída, singelamente, aos próprios animais que andam onde não devem, como se pudessem perceber os perigos de um veículo em movimento em uma estrada qualquer.

A noite é o período mais nefasto para a fauna que, ignorante do perigo, atravessa, permanece ou mesmo anda sobre as estradas, indiferentemente ao movimento de veículos, sendo atropelada e, muitas vezes, causando graves e até fatais acidentes para os condutores. Esse é um fato que se lamenta e não se tem uma solução eficiente, já que as estradas são tão vitais como é a necessidade dos animais de se movimentarem, instinto que os impulsiona à busca de alimento, de parceiros e abrigo.

Quanto mais estradas, mais carros e mais mortes. A equação não é fácil, já que um não entende o outro. Um permite o andar rápido por necessidades diversas, como entregar uma carga, chegar a um destino de férias, ou retornar para casa; outro anda lento, sem pressa, atrás de comida; cuida dos filhotes ou foge de predadores naturais. O atrito é iminente e, na maior parte dos casos, impossível mesmo de ser evitado.

Tem razão o homem quando, para evitar um acidente maior, atropela um quati, um zorrilho, um lagarto, uma tartaruga, uma pesada capivara ou um mão-pelada que se atravessa na via. Tem razão o quati, o mão-pelada, a capivara, o lagarto, a tartaruga e o zorrilho que apenas utilizaram mais um espaço do seu já reduzido ambiente para se deslocar.

De quem é a culpa? Dos bichos por andarem? Dos homens que construíram e utilizam as estradas?

Há um grupo de pesquisadores da UFRGS – o Núcleo de Ecologia de Estradas e Rodovias (NERF) – que, desde 2011, tem o objetivo de avaliar os efeitos das estradas sobre a biodiversidade e, sobretudo, criar procedimentos e ferramentas amostrais e analíticas para apoiar os licenciamentos dessas obras.

Os dados que levantam são assombrosos e mostram o potencial nefasto que as rodovias têm para eliminar uma fatia considerável da nossa biodiversidade, principalmente mamíferos e répteis (https://www.facebook.com/nerf.ufrgs).  O atropelamento de animais em rodovias é considerado a principal fonte antrópica de mortalidade direta de vertebrados terrestres em diversas regiões do mundo (Siriema – http://www.ufrgs.br/siriema/).

Outro projeto que trabalha com dados de atropelamento de estradas é o Centro Brasileiro de Estudos de Ecologia de Estradas (CBEE), que tem um portal no qual qualquer pessoa pode se cadastrar para enviar fotos de animais atropelados que são analisadas pelos especialistas, identificadas as espécies e os registros jogados no sistema.

As estimativas mostram que mais de 15 animais morrem atropelados nas estradas brasileiras a cada segundo e que, diariamente, devem morrer mais de 1,3 milhões, chegando-se à absurda cifra de 475 milhões ao final de um ano. Nenhum exército de caçadores conseguiria atingir essas sinistras marcas. Você também pode colaborar com informações, cadastrando-se no sistema Urubu (http://cbee.ufla.br/portal/sistema_urubu/) e passar a enviar fotos para ajudar a encontrar formas de preservar a vida dos condutores dos veículos e dos animais que cruzam pelas rodovias.

Acho que ainda estamos sendo muito egoístas em culpar apenas os bichos, já que somos nós que nos imiscuímos onde eles estão. Mas isso é muito polêmico e necessita de muitos estudos, consciência e outras crônicas para que se consiga alguma luz.

 

Zorrilho atropelado, uma das milhares de vitimas da nossa biodiversidade

 

 

Advertência para os motoristas, mas não para a fauna

Datas comemorativas de março

Vejo março como um mês especial no calendário, por diversos motivos e por características únicas. É aquele mês do ano quando a curva de temperatura sufocante do verão começa a dar sinais de arrefecer, tornando os dias ainda quentes, muito agradáveis, mas não sufocantes. É que em março se inicia oficialmente o outono, este mês tradicionalmente associado como mudanças no clima, na paisagem e no comportamento de bichos e homens.Vejo março como um mês especial no calendário, por diversos motivos e por características únicas. É aquele mês do ano quando a curva de temperatura sufocante do verão começa a dar sinais de arrefecer, tornando os dias ainda quentes, muito agradáveis, mas não sufocantes. É que em março se inicia oficialmente o outono, este mês tradicionalmente associado como mudanças no clima, na paisagem e no comportamento de bichos e homens.
As datas comemorativas são criadas para homenagear categorias, grupos ou pessoas de relevância, para que fiquem vivos na memória e reforcem os seus princípios ou a importância que tem frente à sociedade ou à natureza. Nesse grupo – natureza – tem muitas datas que visam a oxigenar e a enaltecer alguns elementos pela importância que tem para o planeta e para a sociedade.
No dia 20 ou 21, dependendo do ano, comemora-se no hemisfério Sul o início do outono, quando dia e noite têm o mesmo número de horas (equinócio = noites iguais), uma data importante por mudar o clima e o humor das pessoas. É a virada do tempo, quando aqueles dias longos do verão vão cedendo o terreno para que as noites se alonguem, trazendo as pessoas mais tempo para dentro das casas e perto de fogões e lareiras.
Dia 21 é comemorado o Dia Mundial das Florestas, uma homenagem quase constrangedora que se faz, visto que são elas, as matas, que são tidas como grande entrave ao desenvolvimento da sociedade humana. Só no Rio Grande do Sul, quase a metade do território era, no início da exploração pelos portugueses, coberta por diferentes tipos de matas.
Fico me perguntando o que se comemora nessa data, já que floresta é quase um sinônimo de passado, de atraso, de empecilho, de estorvo. Quando estou dentro de uma mata tento, responder a uma pergunta: por que temos que optar entre nós ou ela? Não conseguimos viver sem florestas, mas também não conseguimos viver muito próximos delas. Um paradoxo.
Dia 22 é a vez de se comemorar o Dia Mundial da Água, parecendo que o mês de março é o mês da consciência pesada do homem. Comemorar o Dia da Água, sabendo de tudo o que fazemos com ela é, no mínimo, hilário.
Ver como tratamos esse elemento vital, seja pela indústria ou pela urbe, fica constrangedor comemorar um dia para a água, elemento do qual necessitamos durante muitas horas de todos os dias de nossa existência. Tratar mal uma coisa que tanto necessitamos parece algo insano, mas é verdadeiro. E para arrefecer um pouco, dedica-se a ela um dia.
Dia 23 é a Meteorologia que recebe as homenagens, essa ciência importante que nos antecipa com algumas horas ou dias os movimentos das massas de ar quentes ou frias, que podem trazer ou reter chuvas, ventos e toda sorte de fenômenos construtivos ou destrutivos que bem conhecemos.
Assim seguimos utilizando dos recursos do nosso planeta de forma predatória e excludente, mas para aplacar um pouco o dano, criamos os “dias de...” que, a meu ver, não servem para absolutamente nada, a não ser para mostrar o dano cada ano maior que fazemos aos homenageados.
Para amenizar um pouco o peso desse desabafo, vejo que neste mesmo mês de março se comemora, no dia 26, o Dia do Cacau. Salve o chocolate, que vem adoçar um pouco esta amarga realidade das comemorações internacionais das coisas da natureza!

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Rio camaquã no Rincão do Inferno

 

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Cascata do Passo do S em Jaquirana - água abundante e mal tratada

 

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Mata de araucária sempre visada pela madeira

Saindo do verão, entrando no outono

O verão, que acaba de passar o bastão do tempo para o outono, é uma estação de dias longos e noites curtas que estimula atividades ao ar livre, sejam em bares de ruas ou em parques e sítios com churrascos ou piqueniques. Recordo-me do verão por boas lembranças que me fazem pensar que as outras estações do ano, com suas características próprias, são um ensaio para o período dourado desses três meses tão aguardados.

Desse período quente, que se inicia pouco antes do Natal, lembro da boa temperatura do dia que desperta a vontade de tomar banho de rio e deixar o calor do corpo seguir com a água fria; de caminhar de pés descalços pela grama e sentir o carinho dos talos massageando cada centímetro da sola e dos dedos; de sair com uma bermuda e sem camisa sentindo o vento e o Sol queimando o corpo e deixando marcas na pele; de parar embaixo de uma guabirobeira carregada e comer as amarelas, deliciosas e picantes frutas; de sentar sob uma árvore no final de uma tarde alongada pelo horário de verão e sorver um mate de boa erva, uma cerveja no ponto ou um vinho branco gelado; daquelas noites de se dormir sem camisa e sem lençol, desviando do calor da mulher nas primeiras horas e buscando o mesmo no frescor da madrugada; de entrar numa sorveteria sempre lotada e encher um pote grande com sorvete de banana com caramelo e completar com castanha triturada; de pegar o carro bem cedo e seguir para um dos cânions do nosso Rio Grande e passar o dia por bordas e arroios gelados da região; de passear à noite pelas ruas do Centro de Canela e apreciar a decoração natalina ainda exposta, com a efusão de luzes, cores e gente de muitos lugares e sotaques.

Agora começa o outono, um período intermediário que se estende até que o inverno chegue e mostre o rigor da latitude 29 graus sul. O verão, cansado já, passou para o outono a responsabilidade do clima e do tempo, recomendando a ele poucas coisas, já que o controle sobre os elementos naturais é inútil. Algumas folhas de plátanos, cedros e ipês já mostram, na sua cor amarelada, que o ciclo anual está no fim, que agora é se desvestir das folhas e aguardar o frio.

O amadurecimento dos pinhões é o maior bônus do outono, trazendo alimento, energia e vigor para a fauna nativa e para nós, que preparamos inúmeras iguarias com identidade e gosto próprios.

Gosto do outono, como gosto das demais estações, porque tem seus encantos. Ao contrário da primavera, que a tudo faz crescer, o outono a tudo faz parar e aguardar. A cerração que encanta e espanta é outra identidade do outono, apesar de aparecer sem aviso em qualquer outra estação.

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A cerração é uma marca do outono

 

Cascata do Passo do S, em Jaquirana, convida a um banho no verão

Cerração

 

Pinhão maduro - uma dádiva da natureza oferecida no outono

 

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