Blog Andando por Aí
Vista do cânion e do Monte Negro, ícones do Topo do Rio Grande
Depois de mais de 120 dias, retornei a um dos meus lugares preferidos: o Topo do rio Grande, em São José dos Ausentes. Com a contração do vírus da covi-19, fiquei em recuperação durante este tempo, garantido ao meu organismo que, quando eu retornasse para o campo, estaria com minha velha forma física. E foi assim. Consegui caminhar pelos campos, subir ao topo do Monte Negro, estive em lugares que cheguei a pensar nunca mais ver, revi amigos muito especiais daqui da Estância tio Tonho, da Pousada Monte Negro, do Rincão Comprido e me senti novamente em forma e em condições de seguir com meu trabalho.
Poder novamente ver o campo no esplendor da primavera, com seus tons de verde salpicado de dezenas de formas e cores de flores das pequenas ervas que medram entre a grama e que tanto encantam nesta época. Abelhas nativas incansáveis visitam estas pequenas e coloridas flores em busca dos preciosos néctar e pólen, fundamentais para a sua sobrevivência. Nem as queimadas de final de inverno inibem estas pequenas e resistentes plantas, que se escondem das chamas rápidas que passam nas palhas do campo, ficando ocultas no solo ou como sementes ou como partes vegetativas de caules que rebrotam assim que o fogo passa.
Florada de primavera pelos campos e bordas dos cânions
Observo um barranco que tem aqui na Estância Tio Tonho e percebo o frenesi de várias espécies de aves que escolheram este local para construção do ninho e criação dos filhotes. O pequeno falcão conhecido como quiri-quiri é um deles, que aproveitou uma toca para fazer seu ninho. Outros hóspedes deste paredão são as graúnas, pequenas aves negras que vivem em bandos e que tem o hábito de se reunirem para uma cantoria que encanta e intriga. Também tem o gibão-de-couro, ave migratória que chega nesta época e se instala em alguma toca disponível. São todos insetívoros e imprimem incansáveis idas e vindas para o campo e matas do entorno em busca de alimento para os filhotes, sempre com fome... A segurança do barranco é relativa, já que os gaviões carrapateiros e os chimangos estão sempre de olho nos ninhos e, ao menor descuido, levam um filhote no bico ou nas garras. Mais desprotegidos estão os quero-queros que na base do barranco fazem seus ninhos toscos, no chão, mais sujeito a predação pelos gaviões e graxains.
A Curruspaca, nome local para a cerração, é outro fenômeno comum na primavera e verão. Quando vem, pinta tudo de branco e simplifica a paisagem. Somem as cores e o branco úmido se impõe, criando cenas fantasmagóricas e surreais. Tive sorte quando voltava para a Estância, no meio da curruspaca, e vi alguns cavalos perto da porteira de acesso a pousada. Ali parados com um fundo infinito criado pelo branco da neblina, pareciam estar na beira de um abismo, indecisos se iam adiante ou não.
Curruspaca (cerração) criando cenários surreais aqui na Estância Tio Tonho
Mas o melhor de tudo foi poder rever os meus amigos, pessoas de primeira linha de quem eu tinha muitas saudades e vontade de sentar e conversar sobre as coisas daqui, dos acontecimentos, quem morreu, que sobreviveu ao COVI-19 e saber de pessoas queridas que partiram. Muito bom rever todos e saber que a vida segue por aqui, independente da seca ou do covid-19. Somos mais fortes.
Sala de ordenha da Estância tio Tonho, uma parte importante do galpão
Um galpão de estância é aquele lugar especial em qualquer fazenda onde se reúnem as vacas para o ordenha, os cavalos para a encilha e as ovelhas para a proteção dos predadores noturnos. Também ali se guardam os apetrechos de montaria, alinhados com capricho à espera do uso diário, onde os cheiros são sempre uma identidade incontestável, seja pelo aroma de terra que se evola do chão batido, do suor dos cavalos, do esterco e urina dos animais, do leite fresco e morno que é retirado nas madrugadas ou do perfume de mato fresco que entra pelas janelas, frinchas e portas.
Aqui na Estância Tio Tonho, em São José dos Ausentes, tem um destes galpões que vejo como um verdadeiro monumento ao trabalho rural e ao gauchismo serrano. Construído pelo proprietário, meu amigo Afonso Vieira, tem um apelo especial no sentido de ser uma obra erigida com tábuas de araucária de madeireiras que foram embargadas e multadas há muitos anos, por derrubadas ilegais. Afonso construiu um galpão amplo, diversificado e que atende inclusive as necessidades da sua família, já que numa das extremidades dele está inserido a sua casa, a cozinha e a sala de refeições da pousada. Um lugar único que mistura galpão autêntico, casa de família e restaurante rural, com mesas e paredes de araucárias com os nós de pinho como adereços e identidade da região, uma ampla lareira e fotos nas paredes com a história da estância e da família.
Café, almoço e janta são servidos neste recinto especial onde as almofadas são todas substituídas por pelegos de ovelhas curtidas ali mesmo. Telhas transparentes inserem uma luz natural durante o dia dispensando a eletricidade. Um fogão a lenha garante as comidas quentes nas refeições, que são sempre muito bem escoradas com uma ampla gama de saladas criadas pelas mãos hábeis da matriarca Antônia e sua filha Letícia. Dependendo da época desfilam, nas saladas, frutas da estação que são produzidas na vizinhança, como a maçã, ameixa, pêssego, goiaba e mirtilo. Espalham-se em fatias entre folhas verdes ou maionese e dão um toque especial ao cardápio do dia. Durante todo o ano tem paçoca de pinhão, um prato serrano típico que é uma marca registrada, tendo também a linguiça com pinhão, uma variação deliciosa e nutritiva da culinária campeira local.
Assistir o Afonso e seu filho Pablo reunindo os cavalos e encilhando cada um com capricho, calma e eficiência de quem faz aquilo todos os dias, é um aprendizado. Eles promovem as cavalgadas pela região dos cânions e o número de usuários não para de crescer. O plantel de cavalos crioulos, mansos e de fácil condução, encanta os hóspedes e garante uma boa renda para a família. Todos os dias, depois da ordenha, os cavalos já ficam na volta do galpão aguardando a dose de ração que devoram com gosto e muito barulho provocado pelos dentes triturando os grãos, criando uma música incomum com sons graves e ritmados de “roc, roc, roc”. Os gatos da casa têm no galpão o seu território, utilizando os lugares mais incomuns para se refugiarem do assédio dos cachorros, como trepar nos caibros e dormir tranquilamente no forro ou se emburacando sob o assoalho da sala do depósito de ração e medicamentos.
O som, o cheiro, o visual, os detalhes e o astral deste galpão contribuem para que os hospedes o adotem de pronto, circulando por ele como se fosse uma galeria de arte campestre. Os detalhes dos cabides que o Afonso fez com as ferraduras usadas e que servem para segurar os arreios, as cordas e tudo o mais que necessite ser pendurado, é apenas um dos quadros expostos por este artista campeiro. Vale conhecer a galeria de arte gaudéria. Parabéns Afonso, Antônia, Pablo e Letícia. Este galpão é diferenciado e vocês são os responsáveis.
Chamar alguém pelo apelido denota uma certa intimidade com a pessoa, um certo conhecimento maior de seus hábitos, estilo de vida e pode sugerir uma convivência de longa data, seja no tempo de escola ou no ambiente profissional.
Apelido, alcunha ou antonomásia são sinônimos para esta forma rápida e perspicaz que algumas pessoas dominam em olhar para alguém, conversar um pouco com elas e criar um apelido que sintetize a pessoa. Muitas vezes de forma jocosa, os apelidos simplificam os chamados e aproximam pessoas de um mesmo grupo, tornando-as mais íntimas e confidentes.
Minha turma de infância, hoje espalhada por este mundão, não fugiu à regra. Já bem cedo, no tempo de colégio, surgiram os apelidos, muitas vezes até mais de um: Vitino ou Xeréx, Erasmão ou Nego Cuspe, Sapo, Áugust, Alemão ou Tito, Beto, Tibiríades, Cisco ou Neca, Peito, Cabroxa ou Zá. Estes nomes surgiram de características de cada um, ou de situações que faziam lembrar da pessoa e quem os cunhou percebeu a relação de um com o outro de forma sutil e muito precisa.
Eu tomo, sempre que possível, um café da manhã num bar que é conhecido mais pelo apelido do que pelo seu verdadeiro nome. É o bar do Xeróx, apelido dado ao Volks Bar devido a semelhanças que havia entre os irmãos que eram os antigos proprietários. Ali conheci e me relaciono com uma galera que marca presença cedo, seguindo depois para as mais diversificadas atividades profissionais. Assim, entraram na minha lista de amigos com apelidos: Tomate, Maçaneta, Palito, Cachopa, Nene, Samuca ou Azedinho, Chima, Zé e Chuvisco, todos muito divertidos e que tornam os cafés da manhã um exercício de bom humor e de atualizações dos acontecimentos recentes da cidade e do mundo.
Apelidar é simplificar, é ir direto a alguma característica do indivíduo, bem diferente do nome de batismo que nada tem a ver com o que vai ser ou gostar de fazer o indivíduo. Acho o batismo do apelido muito mais eficiente do que o próprio nome, e muitas vezes a pessoa é mesmo mais conhecida por ele. Sissóca e Seca Seis, dois nomes que nos atormentavam quando crianças; Deixa-que-eu-chuto e Aqui-tá-fundo-aqui-tá-raso para designar um manco; Caolho para alguém com um só olho; Perna-oca para aquele que come desmesuradamente; Geada, para um albino com os cabelos sempre brancos; Cipreste, para um amigo que uma vez bateu de cara numa destas árvores; Xulé, para um cachorro meu que não saída de perto dos meus pés; Cabrito, para um amigo que era muito hábil em pular sobre pedras quando atravessávamos o Rio do Boi, no Itaimbezinho; INRI, para um amigo muito parecido com Jesus Cristo.
Assim é a vida, onde os nomes de batismo são relegados a um segundo plano e os apelidos, versáteis, engraçados e fortes,traduzem mais fielmente as características do que a pessoa é, ou foi em determinado tempo. E segue a lista interminável.... Prego, Tatu, Chimia, Zuza, Pepe, Armário, Tripé, Zoreia, Pipoca, Lagarto, Vassoura, Maravilha, Telefone, Ferrugem, Tarzan, Ratão, Xita, Porco, Jacaré, Rim, Pantufa, Toco, Leitão, Gigante, Chumbinho, Caju, Cheiroso, Gota, Cabelo, Bodinho ....
Praia de Arroio Teixeira, RS
A praia de Arroio Teixeira tem, para mim, um apelo sentimental muito forte e que me remete aos bons tempos de guri, quando ficávamos por lá um mês inteiro de bons verões sarandeando pelos cômoros de areias, levando torrão de descascar a pele como fazem os lagartos e brincar de carro de corrida, onde cada um era o piloto e seu próprio carro, pelas largas avenidas gramadas da pequena e incipiente comunidade. Meu pai tinha uma casa que dividia com um tio, então ficávamos um mês e eles o outro, e assim íamos trocando a cada ano, ora em janeiro, ora em fevereiro, mas sempre era muito divertido.
Para chegar na praia já era uma verdadeira aventura, cruzando os campos de São Francisco de Paula em estradas poeirentas até a boca da Serra do Pinto. Com sorte podíamos apreciar a paisagem belíssima e assustadora da serra e seus peraus, recortes e matas densas com o horizonte ao fundo mostrando o nosso local de chegada: o litoral. Descer a serra era arriscado e lá íamos sacolejando e vomitando até a base da serra, onde o pai parava à beira de um arroio para um piquenique. A galinha com farofa e outras delícias que a mãe preparava reconfortavam o estômago tão sofrido com as constantes regurgitações sofridas até ali.
Quando finalmente chegávamos em Curumim, era o alívio e o encantamento de rever o mar e as areias brancas e dançantes dos cômoros ribeirinhos. Seguíamos pela orla até a entrada de Arroio Teixeira e torcíamos para o carro não atolar no areal. Em casa a coisa era outra. Fechada o ano todo, ela tinha vários problemas, e um deles era a água. Naquela época, cada casa tinha um poço de onde tirava a sua água, bombeada manualmente até a caixa. Este era, para nós crianças, o serviço mais duro a ser feito na praia. Cada um tinha que “bombear” uma quantidade de vezes e ficar ouvindo a água subir pelo cano e se derramar na caixa acima. Era duro, mas divertido. Luz elétrica era outra coisa interessante. Havia um motor a diesel gigantesco que movia um gerador, que ficava ali por perto de casa. Ligavam pela manhã umas duas horas e depois a noite, até as 24h. o resto da noite era uma escuridão quebrada apenas por velas, lampiões e lanternas. Lembro que ficávamos brincando na rua até o “primeiro sinal”, que era dado quando o gerador era desligado e religado, avisando a todos que dali poucos minutos a luz seria desligada. O “segundo sinal” era o prenúncio da escuridão aguardada com expectativa e apreensão. Tudo silencioso, escuro e nossas pupilas totalmente abertas. Ali começa um novo período de brincadeiras que, não raro, levava um de nós a se cortar em alguma cerca de arame ou machucar com quedas e tropeços em pedras invisíveis.
Estive este final de semana em Arroio Teixeira e fiquei andando e relembrando minha infância. Nada mais é o que era, pois sumiram os cômoros de areia; surgiram os postes de energia elétrica, agora abundante o ano todo; não existem mais poços de água e bombas manuais; as avenidas gramadas foram pavimentadas e as ruas asfaltadas; multiplicaram-se muitas vezes as casas; a nossa casa querida e carregada de histórias, foi demolida. Mas o mar me pareceu o mesmo, com seu encanto hermético que desafia a todos, seu cheiro de sal e suas areias pontilhadas de tatuíras, garças e mariscos. Apenas a noite ficou mais clara e mais sonora, o que me leva a pensar que a lembrança é mais forte que o tempo, pois ela não pode ser demolida.
Interpretar a paisagem aumenta muito a qualidade de uma aventura na natureza
Uma boa vivência na natureza pode ser feita de muitas maneiras. Uma delas é pegar seu carro, moto ou bicicleta e seguir a um determinado destino e lá absorver o que a paisagem oferece, com seus segredos e belezas. Nesta alternativa, se você não tem um conhecimento maior do local, uma olhada na paisagem pode lhe ser muito agradável pelo que ela oferece, como o relevo, os tons de cores, os sons locais, o horizonte e seus ladrilhos de ocupação humana, um rio que serpenteia pelos locais mais baixos, etc. E isso é tudo.
Outra alternativa é ir a um destino e ali contratar um guia local, que lhe acompanhará por algumas horas e lhe mostrará coisas que você via, mas não enxergava, ou não entendia. Os guias locais são muito bem informados de detalhes que podem tornar sua experiência na natureza muito melhor, mais informativa, mais completa, mais prazerosa.
Outra possibilidade é você se juntar ao nosso grupo, que está em formação – máximo doze pessoas, e seguir comigo para um destino que é um dos mais expressivos e interessantes do nosso Estado – o Monte Negro, o verdadeiro Topo do Rio Grande e seus inúmeros atrativos. Lá, além de desfrutarmos das delícias da culinária serrana, de sentirmos o aconchego da Pousada Monte Negro e da Estância Tio Tonho, vamos perambular por alguns caminhos nos quais eu lhes mostrarei o que me estimulou a escrever e a fotografar os meus projetos Um ano no Topo do Rio Grande e A Borda. Estes projetos eu desenvolvi entre 2017 e 2019, e me permitiram fazer um retrato da paisagem ao longo de um ano e uma experiência de viver só em um lugar isolado. Um livro correspondente ao primeiro projeto deverá ser lançado em breve contendo crônicas e fotos sobre as quatro estações do ano na região do Monte Negro.
Vou fazer, para cada local visitado, uma interpretação da paisagem para que se possa ter um maior conhecimento do local e, com isso, uma maior qualidade de visitação. Vou levá-los ao Topo do Rio Grande em uma breve caminhada até o ponto culminante do nosso Estado e de lá absorver a incrível paisagem que se abre no horizonte, adicionando histórias incríveis contadas pela nossa guia local e parceira Edinaira Lopes. Conheceremos uma propriedade chamada Rincão Comprido, onde há uma produção secular de um queijo serrano premiado, e de um gosto e textura únicos.
Junte-se a este grupo. Sairemos de Canela em uma van fretada especialmente para esta aventura que iniciará no dia 20 de novembro as 7:30h e encerrará as 18h do dia 22. Tanto na van como nas pousadas, serão observados todos os cuidados sanitários protocolares exigidos. Informe-se mais em www.vitorhugotravi.eco.br/site/ ou pelo whatsapp 54 999985488.
Foz do Rio Divisa com o Rio Silveira, em São José dos Ausentes.
Gosto de ir a algum lugar remoto onde a paisagem me remete a ausência de rastros humanos ou, pelo menos, com o menor indício de sua presença. Estou agora num destes lugares que escolhi a dedo, tendo à frente o horizonte norte com um mar verde de campos nativos e uma mistura equilibrada de capões de matas de araucária e matas de galeria, aquelas que acompanham as margens dos rios. Bem à frente vem descendo e cantando o Rio Silveira, num período de grande seca, e que recebe calmamente pela direita o Rio do Marco. Pouco acima deste ponto está o famoso Desnível dos Rios, onde estes dois corpos líquidos quase se encontram. A partir deste ponto o Rio Silveira segue adiante para se atirar no Cachoeirão dos Rodrigues, logo abaixo, e seguir seu sinuoso curso até se encontrar com o Rio Pelotas, na divisa com Santa Catarina.
Os diferentes matizes de cores variam de um verde intenso e claro, típico do tom que mostra o vigor dos campos de primavera e o verde escuro das araucárias. Este equilíbrio de tons de verde dá a paisagem um toque de artista, de um pintor de quadros que escolhe fielmente as cores que vê. Pinceladas de sombras escuras se projetam revelando a posição do sol no momento. Os sons da água e das aves se misturam a paisagem e compõe uma música única, idílica, irreproduzível formada por uma profusão de instrumentos comandados por um maestro invisível.
Percebo que algumas perdizes se comunicam com seu trinado curto e inconfundível, ocultas que estão pelo gramado alto do campo, não se vendo, mas se ouvindo e se encontrando. O vento sarandeia pelos galhos das araucárias fazendo com que dancem ao som de uma música ancestral, girando seus galhos para lá e para cá e emitindo sons de flautas, como se estivessem num concerto campeiro muito alegre e divertido.
Um bando de gralhas se aproxima de mim, agora sentado e escrevendo a sombra de umas araucárias, e começam a espiar este intruso que parece não se mexer. Uma formiga sobe pela minha canela, vencendo o cano da bota e entrando por baixo da calça. Um canário-da-terra macho, pousado no topo de uma araucária próxima começa a cantar para uma fêmea invisível. Seu canto parece um chamado desesperado, melodioso, sibilante e alegre, para ser ouvido e querido por uma parceira. É a primavera e seus efeitos sobre os animais e plantas.
As sombras dos capões estão mais longas, indicando o passar das horas. Um bando de corucacas passa a baixa altura sobre o campo com seus “crac” crac” característicos, indo para algum lugar na direção do Oeste onde estão as casas de uma estância. Um quero-quero dá um alarme distante, sugerindo algum intruso em seu território que, nesta época, está com ninho com seus ovos postos no solo ou já com filhotes, tão pequenos como pintos recém-saídos. São presa fácil para os gaviões que rondam o campo sem descanso. O vento segue seu concerto com as araucárias e parece que vai longe o espetáculo...
Dia de chuva forte e com granizo, numa manhã aqui em Canela, RS
Olhando a chuva que cai com força, enxergo pressa nas gotas em chegar ao solo, algumas diretas do céu se esborrachando no gramado e outras escorregando por folhas e galhos das árvores, driblando obstáculos vivos. Parece que a chuva atende um chamado da terra, reverberado pela sede do torrão, da planta, do bicho. Indignadas pela perda do precioso líquido, as nuvens esbravejam e riscam o céu com trovoadas, raios e relâmpagos, como a dizer: “eu mando a água agora, mas a quero de volta depois”. Assim, num lento e invisível ciclo, esta mesma água que agora cai, com audíveis e visíveis protestos das nuvens, logo voltará a estufá-las quando se operar a magia da evaporação, impulsionada pelo vento e o calor do sol.
As gotas de chuva trazem fertilizantes da atmosfera e adubam os campos, lavouras e matas, limpam as folhas das árvores da poeira acumulada e trazem de volta ao solo as partículas que o vento arrancou da terra seca. Tudo que sobe, desce. Na mata a água da chuva, quando abundante, encharca velhos troncos e galhos imprimindo um peso extra, o que os fazem quebrar e despencar limpando a árvore de seus braços mortos que, agora no solo, nutrirão fungos e um exército de famintos insetos e micro-organismos comedores de madeira. Na cidade ela é como uma vassoura viscosa que se molda às entranhas das calçadas e ruas arrastando poeira e lixo, graxa e papel, elementos estranhos que irá carregar até algum lugar distante.
Tudo se cala durante a chuva, todos viram espectadores do fenômeno que, não fosse pelo seu mau humor de algumas vezes em que se transforma em tragédia, se constituiria num espetáculo sempre novo, diferente dos anteriores pelo horário, intensidade e temperatura. É como se a natureza parasse para reverenciar a água que desce das nuvens e vem hidratar a vida no solo. Por vezes esta água vem em forma de pequenas pedras de gelo, azarando a vida de muitos por aqui.
Passada a chuva, surgem os sons naturais do lugar. Sabiá, saíra, tico-tico, gralha-azul, trinca-ferro, corruíra e até um casal de curicas se põe a cantar e buscar alimento. Olhando para o céu agora vejo as nuvens mais ralas, livres da sua carga e indignadas, se desfazendo em fiapos permitindo ver o azul forte do céu com o sol forçando passagem e trazendo luz quente que, com sua força invisível, começa a puxar de volta em quase invisíveis ondas ascendentes de vapor, a água derramada pouco antes, como se tivesse um acordo secreto com as nuvens, agora dissipadas. Assim vai se completando o ciclo da água por aqui e garantindo a vida na sua plenitude. Na próxima chuva, pare tudo o que estiver fazendo e observe o espetáculo da chegada da água, o silêncio da fauna, o protesto barulhento das nuvens perdendo sua carga líquida e fique certo de que tudo o que desce, de alguma forma ou outra, acaba subindo em algum momento posterior. É o ciclo natural das coisas sem vida e que comandam as coisas com vida aqui no nosso planeta.